Friday, April 21, 2006

O corpo fala

A luz do sol incidindo pela janela formava longas sombras na sala de espera do dentista, indicando o final de uma tarde abafada e úmida, como há muito não se via na cidade. E sentada no canto oposto à janela, protegendo-se dos últimos e incômodos raios com um desproporcional par de óculos escuros, estava ela, com a cabeça encostada naquela fria e exageradamente branca parede de concreto, logo embaixo de um desses quadros modernos, que eu tinha certeza estar de ponta-cabeça.
Os cabelos curtos tingidos de um ruivo desbotado pendiam suavemente sobre os ombros, sua cabeça pendia levemente para a esquerda, denunciando uma tristeza contida, tristeza essa reforçada pela maçãs do rosto forçosamente coradas com um blush rosa, que nada combinavam com aquele batom vermelho-vivo que tingia seus lábios levemente comprimidos.
Os braços cruzados espremiam os seios de volume médio, aumentando-os consideravelmente e expondo-os ainda mais naquele decote em "v" que teimava em chamar minha atenção, talvez pelo lindo contraste entre seu colo alvo e a blusa verde escura. Porém, mais do que ressaltar o belo par de seios, os braços cruzados mostravam uma insegurança, uma fragilidade, uma vontade de se resguardar que atiçava ainda mais a minha curiosidade com relação àquela garota. A posição levemente inclinada para trás realçava ainda mais aquele ar melancólico e depressivo.
O piercing no umbigo indicava um leve e saudável ar rebelde, reforçado pelos pneuzinhos charmosos de quem não se sente à vontade em uma academia.
A calça jeans de cintura baixa deixava aparecer displicentemente uma calcinha barata e cor-de-rosa, que constrangia mais os espectadores do que sua dona. As pernas firmemente cruzadas e o pé direito firmemente ancorado no pé da cadeira deixavam transparecer ainda mais aquele medo com um toque de timidez que me fascinava cada vez mais.
Eu já não conseguia tirar os olhos daquela fotografia, daquela imagem estática tão triste e tão ressentida que se exibia sob os raios alaranjados do astro-rei que se punha. E então, simples assim, a fotografia virou um filme através de uma singela e discreta lágrima que escorreu por detrás dos óculos e deslizou por toda sua face esquerda antes de molhar o verde escuro de sua blusa. Instintivamente ela mexeu em sua aliança dourada no dedo anular da mão esquerda.
O que havia acontecido com essa garota? O que escondia aquele par de óculos?
Tão nova, casada, e terrivelmente triste, angustiada e tensa. Pelo menos é o que me diziam os sinais de seu corpo, um corpo que falava, que gritava sem palavras.
Logo fui chamado para a consulta e quando voltei, ela não estava mais lá. E desde então tenho pensado incessantemente sobre os motivos que poderiam tê-la deixado daquele jeito. Agressões, violências, arrependimentos, brigas, filhos, amantes... a minha mente fértil viajou até os confins das emoções e razões humanas em busca de uma resposta, e só se recusou a considerar uma hipótese: a de que fosse uma simples e insuportável dor-de-dente.