Monday, October 02, 2006

1907

Alberto largou a arma na mesa pela vigésima-terceira vez. As lágrimas, agora já não mais contidas, misturavam-se com o suor que brotava de cada poro aberto pelo desespero e pela adrenalina.
Não entendia o que estava acontecendo, o ano anterior, 1906, fora marcante em sua vida, muitos prêmios, medalhas, fortuna, o grande sonho enfim realizado, e no entanto, lá estava ele, mergulhado em uma inexplicável agonia e depressão. Estava em meados de fevereiro, e desde o primeiro dia do ano que não deixava o quarto, a governanta, o mordomo, todos haviam tentando de tudo para tirá-lo de lá, mas em vão. O sentimento de culpa que o dominava era castrador, imobilizador. Mas não imobilizador a ponto de impedi-lo de destruir todo o quarto, rasgar os certificados na parede, entortar os vistosos troféus que ornamentavam a cabeceira de uma outrora belíssima e aconchegante cama, agora transformada em uma profusão de mofo e excrementos.
Era insuportável. Como se 154 vozes clamassem por justiça, por misericórdia. Como se 154 indicadores apontassem para seu rosto encharcado e esquálido, pedindo sua cabeça. E no fundo ele sabia que estavam certos. Era o culpado, tinha uma total consciência disso. Mas culpado pelo quê? Como era possível ter certeza da culpa sem saber a acusação? E esse improvável paradoxo o desesperava ao limite do suportável.
E foi assim que ele atravessou aquele 1907, trancado em seu quarto sem olhar uma única vez para o número quatorze, seu maior orgulho até então, com menos de um ano de idade. E ao longo desse ano ele alternou novas tentativas de enfim puxar o gatilho, com rezas fervorosas onde pedia perdão de forma incontrolável. Desejava, porém, acima de tudo, que aquelas vozes um dia tivessem paz, que tivessem um julgamento justo perante algum ser superior, e que fossem também perdoadas por tudo o que fizeram de errado.

Demorou 24 anos para Alberto entender o que tanto o afligira e ainda de certa forma o afligia. E neste dia, após a revelação, foi para casa e se matou.

(que descansem em paz, e que seus familiares encontrem conforto de alguma forma.)

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