Thursday, February 23, 2006

Ruído

O mais perto que havia chegado de uma arma de fogo fora há dois anos, quando se sentou na primeira fila do cinema em um filme de ação. Nunca quis ter uma, nunca quis ver uma funcionando, nunca houve curiosidade.
E de repente, em uma ensolarada manhã de quinta-feira, lá estava ela, menos de 2 metros de distância, semi-coberta por uma camiseta azul-marinho, pronta para tirar todas as dúvidas que nunca teve. A voz, vinda de trás de um capacete, soou clara como se estivesse atrás de um microfone em um show no estádio do Morumbi. "Deixa a mala no chão e sai andando.".
Quando ele se deu conta, estava sem a mala, sentado à sua mesa, falando ao telefone para que cancelassem mais um cartão. Na mão direita estava uma caneta, e sob a caneta, uma lista com cerca de 15 objetos furtados.

Foi nesse momento que parou, e agradeceu.

A lista continha só objetos. Poderia conter nomes conhecidos. Poderia conter seu nome.

Mas continha só objetos.

E teve início a cacofonia: Alívio e medo. Raiva e gratidão. Preocupação e desinteresse. Vontade de gritar e de ficar calado. Ir para a delegacia a pé ou de ônibus. Colocar a carteirinha falsificada no BO ou não. Sentar no banco de madeira frio ou encostar na parede fria. Ouvir ou não ouvir a conversa do escrivão com um senhor de olhos vermelhos. "O corpo da criança está na Av. Dr. Arnaldo.". Poderia conter nomes conhecidos. Ouvir ou não ouvir a conversa do escrivão com a colega. "Isso é que dá querer ajudar pobre.". "Como escreve áipode?". "O importante é a vida. O resto a gente corre atrás.". "Perdeu o CNH?". "É por isso que eu concordo com o cara que matou os bandidos no Carandiru.". "Deus me livre querer mal pra alguém.". "Vai voltar pra empresa?".

"Acharam a sua carteira perto do Tom Brasil. Está sem dinheiro, mas com todos os documentos.". "O senhor quer escolta pra buscar?". "Não tem perigo não.". "Ele ainda deve estar te xingando por não ter dinheiro.".

"Um cara ligou, falando que está com a sua pasta. Ele trabalha perto da Ponte do Socorro, fica lá até às 18:00."."É só pegar a ponte transamérica sentido interlagos.".

"Conseguiu recuperar tudo?". "Dos males o menor.". "Ainda bem, já imaginou o trabalho?".

"Vai descansar que hoje o dia foi movimentado.". "Nossa, e você acordou tão cedo!"

E assim a cacofonia foi acabando, em fade out, até sobrar somente um ruído em sua cabeça, persistente, que não vai acabar nunca... eu espero...

"O importante é a vida. O resto a gente corre atrás."