Wednesday, September 21, 2005

Inquebrável

O revólver calibre 38 ainda estava em sua trêmula mão direita. A cabeça latejava de dor, intensificada pelo cheiro de pólvora que subia por suas dilatadas narinas. O quarto praticamente escuro, iluminado somente por um vão na janela, ainda ecoava o barulho. O cachorro da vizinha latia assustado.
Sentado em sua cama, olhava para o espelho à sua frente, todo estilhaçado, tentando entender o que havia acontecido. Havia mirado. Mais do que isso, havia encostado o cano gelado em sua testa ensopada de suor. E havia puxado o gatilho. Mas estava vivo. A bala, com a ponta achatada, jazia entre os cacos no chão. Não era possível.
Resolveu tentar novamente, desta vez com a arma apontada para o coração. Com a boca do cano firmemente pressionada contra o peito, engatilhou e atirou.
A dor tirou sua consciência por instantes. Acordou sem quase conseguir respirar, a dor era lancinante. Pior que a dor, porém, foi a visão da arma e da bala caídas ao seu lado na cama.
Não podia morrer. Não podia se ferir. Pensou um pouco, e não se lembrou da última vez que havia se cortado, ou quebrado um osso.
Seu corpo era inquebrável.
Olhou para o sólido e escuro armário embutido de mogno, agora vazio. Olhou para a foto, rasgada em oito pedaços, junto aos cacos do espelho. Olhou para as balas.
E riu das ironias da vida.

Saturday, September 17, 2005

Infância

A pequena garota era extremamente corajosa. Adorava se pendurar nos brinquedos do parquinho, ficar de pé no gira-gira, ficar de cabeça para baixo no balanço, descer o escorregador correndo. E quando caía no chão, se levantava rapidamente e erguia os braços falando "tchan-tchan!".
Ela tinha um irmão, também pequeno, porém muito mais quieto, bem mais calmo e ponderado, mas que no fundo queria ser ágil e valente como a irmã. Ambos moravam em um simpático apartamento com a avó.
Um dia, num rasgo de bravura, o pequeno garoto disse à irmã: "vamos no parquinho". E lá foram eles. Enquanto ela ia correndo, sorridente, ele mal conseguia ficar em pé, suava frio, a barriga doía, tinha medo. Mas havia decidido: iria provar que também conseguia fazer todos aqueles malabarismos.
Logo que chegaram, lá foi ela para o escorregador enquanto ele encarava aquele que com certeza era o maior desafio daquele assustador e perigoso local de diversão: o balanço. A idéia de ver o mundo do avesso, pendurado com o pés para cima, o amedrontava e o atraía em igual intensidade. Caminhou lentamente em direção ao brinquedo. Ofegava. Suava. Ouvia batidas fortes, que não sabia dizer se era o seu pequeno coração ou os passos da irmã correndo escorregador abaixo. Parou em frente àquele banquinho com correntes, e lá ficou por alguns segundos, em parte por respeito e temor, em parte por não saber direito como começar.
Por fim decidiu onde colocar o pé para iniciar a histórica escalada, e passado alguns instantes, com a cabeça virada para baixo e pés firmemente presos, gritava triunfante: "eu não consigo descer! Aaaahhh!". Antes que a primeira lágrima dele tocasse o chão, lá estava a irmã, subindo no balanço ao lado com uma agilidade que faria Charles Darwin gritar "EU NÃO DISSE???". Rapidamente, conseguiu segurar o braço de seu irmão, e com uma força descomunal para uma garota de 4 anos, conseguiu fazer com que ele alcançasse a corrente. Entre lágrimas, o garoto então balbuciou: "E agora, o que eu faço?". A garota, se equilibrando somente em uma perna sobre uma balança que teimava em balançar, alcançou os cabelos do irmão e puxou. "Levanta a cabeça!", ela gritou. E então, de alguma forma rápida e atabalhoada, o garoto subiu e a garota... caiu.
O choro histérico da menina, deitada no chão com a cabeça sangrando, rapidamente atraiu o porteiro, o zelador, o síndico e a vó. O garoto, ainda sentado no balanço, tentava explicar o que havia acontecido, embora o fato de querer esconder o próprio fiasco atrapalhasse bastante o entendimento da história.
A pequena garota foi para o pronto-socorro, passou por exames de tomografia, e recebeu 4 pontos na cabeça, mas nada além disso, "graças a Deus". O pior, mesmo, foi ter ficado de castigo por um mês sem TV e sem parquinho por ter inventado de fazer "essas brincadeiras de menino".

Tuesday, September 13, 2005

Dúvida torturante

Já me disseram para desistir disso milhares de vezes.
De fato não vai me tornar uma pessoa melhor, nem resolver nada em minha vida.
Mas afinal:
Como saber se a cor que eu vejo é a mesma que você vê?

Celebridade

Aconteceu quando tinha 18 anos. Adorava discutir, discordar, argumentar, participar de masturbações mentais, orgias intelectuais e pseudo-intelectuais... e então um dia, durante uma discussão, teve uma cãimbra na língua. Médicos das mais variadas especialidades o examinaram (dentistas, otorrinolaringologistas, cirurgiões plásticos, dermatologistas, ginecologistas!), porém nenhum deles soube dizer o porquê da cãimbra não passar. O fato é que, a partir deste dia, ele passou a andar com sua língua, rija, para fora da boca.
No começo até que foi divertido: comprou uma garrafinha "squeeze" último tipo, cromada e emborrachada para manter a língua úmida, havia uma fila de garotas querendo descobrir "novas sensações", ele virou um cara bastante popular, embora fosse impossível entender o que dizia. Logo foi chamado para entrevistas na TV e em emissoras de rádio. Paparazzis o perseguiam atrás de uma foto que mostrasse a língua em toda a sua exuberância. A vida não podia ser melhor. Isso no primeiro mês.
Após 2 anos, estava visivelmente estafado e deprimido. Achava que seria temporário, mas não. Não tinha sossego. Havia sempre pelo menos 3 fotógrafos em frente à sua casa. Impossível argumentar, eles não entendiam o que dizia mesmo. Já havia trocado o número do telefone tantas vezes que já nem sabia mais qual era. Mas as pessoas continuavam a ligar só para ouvi-lo tentar balbuciar um "alô". As garotas desapareceram, pois correu o boato de que sua língua "não era assim tão rija". Duas vezes invadiram a sua casa, e duas vezes ligou para a polícia: da primeira vez, a atendente achou se tratar de um trote, "e extremamente sem criatividade". Da segunda, um atendente o reconheceu e o colocou no "viva-voz" para que todos os colegas ouvissem seus conhecidos irreconhecíveis murmúrios. Não aguentava mais aquela vida.
E então decidiu.
Comprou um capacete, destes de engenheiro de obras, e numa noite particularmente deprimente, depois de ter desperdiçado quase meia garrafa de whisky pelos cantos da boca, vestiu o capacete e arremeteu contra a parede mais próxima, decepando com os dentes a tão afamada língua.
Sentou no chão, e enquanto o sangue transbordava, chorou de felicidade. Não porque seria deixado em paz. Isto ainda demoraria alguns meses. Não porque voltariam a entendê-lo, pois agora não teria língua nenhuma. Não porque poderia jogar fora a trambolhenta garrafinha. Não porque poderia parar de comer papinha de canudinho.
Chorava pois enfim, após tanto tempo, não iria acordar sobre uma fronha ensopada de baba.

Friday, September 09, 2005

(Pois é, como eu já sabia desde o começo, resolvi divulgar o Blog. Sejam bem-vindos!)

Dificuldade

Quando garoto, achava difícil aparecer, se fazer notar.
Hoje, mais maduro, tem certeza: difícil, mas difícil mesmo, é não desaparecer.

Tuesday, September 06, 2005

Relatividade

Despediram-se desesperadamente. Ela ia, ele ficava. E muito mais rápido do que o momento merecia, separaram-se. Horas, dias, semanas, meses, anos, uma eternidade. Ele trabalhando aqui. Ela lá. Tentavam não pensar no... não pensar em... não pensar. E então um telefonema: "meu vôo chega às 21:05". Colocando de volta o coração que saltara pela boca, lá foi ele em direção ao aeroporto. Se reencontraram. Choraram. Gritaram. Se beijaram demoradamente. E prometeram nunca mais se separar.
Alguns acharam aquilo um exagero. Outros ficaram constrangidos com descabida demonstração de afeto. Houve ainda os que disseram que nunca viram nada parecido por conta de dois dias longe. E todos foram dormir com uma ponta de inveja.

Monday, September 05, 2005

Contato

"ELLIE
You may not believe this... but there's a part of me that wants more than anything to believe in your God. To believe that we're all here for a purpose, that all this... means something. But it's because that part of me wants it so badly that I'm so stubborn about making sure it isn't just self-delusion. Of course I want to know God if there is one... but it has to be real. Unless I have proof how can I be sure?

JOSS
Do you love your parents?

ELLIE
I never knew my mother. My father died when I was nine.

JOSS
Did you love him?

ELLIE
Yes. Very much.

JOSS
Prove it."
(E eu continuo me perguntando: se não quero que ninguém veja o meu blog, porque diabos não escrevo o que eu quero em um arquivo de word e coloco em uma pasta escondida? Esse subconsciente...)

Sunday, September 04, 2005

(Ainda não sei se vou dizer às pessoas que tenho um blog. Estou começando este como uma forma de terapia. Há muito gostaria de algum lugar para colocar meus pensamentos, organizá-los. Blog é mais barato que psicólogo. Mas a minha timidez lamenta a falta do "sigilo profissional", tão caro ao último. Vamos ver o que dá.)

Anagrama

A vida é um mar revolto, dizem. Por sorte, temos faróis: um bom emprego, chefe compreensivo, academia 3 vezes por semana, amigos do futebol às quartas, uma esposa fiel, aulas de M.B.A. 4 vezes por semana, happy-hour na sexta, jantar fora no sábado, cinema no domingo...
Estou ofuscado.